segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Yourcenar - Safo ou o suicídio



(…)

desce a correr
as ruas cheias de despojos e de lixo
que conduzem até ao mar,
mergulha na vaga dos corpos.

sabe que nenhum encontro
lhe trará salvação,
pois não poderá,
para onde quer que vá,
voltar senão a encontrar Átis.
aquele rosto desmesurado
tapa-lhe todas as saídas
que não dão para a morte.

a noite cai
semelhante a uma fadiga
que lhe baralhasse a memória;
um pouco de sangue
persiste do lado do poente.

repentinamente
ressoam tímbalos, como se a febre
os fizesse chocar
dentro do seu coração:
contra sua vontade,
um longo hábito levou-a de volta ao circo,
à hora onde todas as noites ela luta
contra o anjo da vertigem.

uma última vez
enche-se daquele cheiro de animal selvagem
que foi o da sua vida,
daquela música enorme e desafinada
como é a do amor.
(…)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

    O meu olhar é nítido como um girassol.
    Tenho o costume de andar pelas estradas
    Olhando para a direita e para a esquerda,
    E de vez em quando olhando para trás...
    E o que vejo a cada momento
    É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
    E eu sei dar por isso muito bem...
    Sei ter o pasmo essencial
    Que tem uma criança se, ao nascer,
    Reparasse que nascera deveras...
    Sinto-me nascido a cada momento
    Para a eterna novidade do Mundo...

    Creio no mundo como num malmequer,
    Porque o vejo. Mas não penso nele
    Porque pensar é não compreender...

    O Mundo não se fez para pensarmos nele
    (Pensar é estar doente dos olhos)
    Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

    Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
    Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
    Mas porque a amo, e amo-a por isso
    Porque quem ama nunca sabe o que ama
    Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

    Amar é a eterna inocência,
    E a única inocência não pensar...

    Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos", 8-3-1914

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A abelha

A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,
Não mudou desde Cecrops.
Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.
Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós — ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! —
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

MUNDO INTERIOR

Amava seu mundo interior, caos selvagem,
bosque antiquíssimo e adormecido, sobre cujo
silencioso despenhar verde-luz, seu coração
se erguia. Amava. Abandonado, as próprias raízes mergulhou
na origem poderosa, onde sobrevivia seu pequeno nascimento.
Desceu, amando, ao sangue mais antigo, ao abismo
onde jaz o Espanto, regurgitado pelos ancestrais.

...

"Também do lado pessoal a arte afinal é uma vida eleveda. Ela torna mais profundamente feliz, ela consome mais rapidamente. Ela sulca no rosto de seu criado os ratros de aventuras imaginárias e espirituais e ela produz, com o decorrer do tempo, mesmo em monástico silêncio de existência exterior um ânimo, uma supersensibilidade, um cansaço e uma curiosidade dos nervos que uma vida cheia de dissolutas paixões e prazeres não consegue produzir."
(Thomas Mann, A morte em Veneza)